terça-feira, 5 de julho de 2016

Sobre a intentona de se produzir resistência em linhas cindidas de dor digitalizada.

 Eu penso que leitura e escrita são atos complementares dentro de uma mesma cena: o mais puro desespero existencial. Um grito histérico em busca de amplitude diante do caos cósmico que nos reduz a esse emaranhado de moléculas, tecidos e vísceras ambulante. Leitura como fuga, escrita como resistência. É o dispositivo vital dos deprimidos, ansiosos e outros patologicamente inconformados com a vida, com essa existência virtual que nos comprime em pixels, cápsulas e nos rega à radiação diariamente, pra depois nos enterrar no vale das redes sociais especializadas em relacionamentos amorosos, dos blogs de auto-ajuda e outros reducionismos bidimensionais da infinitude que aprendemos a esquecer. Nós somos o que restou de Auschwitz, o que vaza das usinas nucleares diariamente, o chorume dos lixões, o vírus autoimune nos corpos abandonados pela ciência farmacêutica, o papel na língua da nova juventude e todo esse curto-circuito neurológico que nos determina enquanto seres (sobre)viventes em tempos de pressa, déficit de atenção, suicídio de jovens, sociedade geriátrica. Nós estamos cometendo um enorme genocídio, mas nossos olhos estão sendo deliciosamente revirados num orgasmo convulsivo provocado por toda essa masturbação tecnológica. Eros e tânatos estão dançando um tango através de um simulador de videogame e nós somos espectadores de toda essa auto-destruição. Assistimos com óculos 3D, em risos eufóricos, à germinação dos transgênicos que plantamos na fissura existencial do homem contemporâneo. Encontramos o que somos, então, ao findar da água, da camada de ozônio e das nossas camadas de sanidade, na dose máxima de clonazepam, na overdose de drogas sintéticas, no mais doloroso corte conceitual no punho de um pré-adolescente, no infarto do workaholic bem-sucedido, no velório da modelo anoréxica que morreu por falta de curtidas, no mais doloroso abandono dos seguidores desconhecidos. É nesse abismo de alguns segundos em que nossos olhos são forçados a abandonar as telas, aí temos o cansaço suficiente pra fugir e resistir, não como paradoxos, mas como o ato mais revolucionário que essa contemporaneidade pode alcançar. Ler e escrever são, atualmente, um protesto às imagens, um protesto à produtividade, um gemido sado-masoquista em defesa do sofrimento como manifestação mais visível do sentir nesses tempos imagéticos. A leitura e a escrita com fins em si mesmas não estão na moda, não agregam valor às empresas e nem aos currículos, estão decantadas no fundo da alma, estocadas junto aos produtos vencidos e são vendidas como adorno estético aos hipsters de plantão em brechós vintage. A leitura-escrita se perdera em termos de causa e só causa algum efeito emocional quando não excede 180 caracteres. Eu não quero mais causar nada, excedi até os limites semânticos, mastiguei toda essa espessa censura líquida e transparente e, num soluço enojado pelo gosto e pela textura, regurgito digitalmente os pedaços que meu suco gástrico não dissolveu desse conteúdo tóxico, porém reciclável aos olhos de quem ainda sabe ler o que está dissolvido nas entrelinhas.